Gálatas: Teologia e Propósito – Temos aqui uma exposição da mensagem teológica e o propósito do livro de Gálatas escrito pelo apóstolo Paulo.
Vamos começar com a ficha técnica do livro:
Ficha-Técnica do Livro de Gálatas
Autor: Apóstolo Paulo
Data: 48/49 d.C.
Origem: Jerusalém / Antioquia
Destino: Sul da Galácia visitadas por Paulo
Motivo: Combater heresia judaizante
Propósito: Defender o único evangelho
Tema: Judeus e gentios salvos pela fé e não pelas obras da lei
Versículos-Chave: Gálatas 3.10-14
Introdução à Carta aos Gálatas
Acredita-se amplamente que a Carta aos Gálatas seja a primeira das cartas de Paulo a ser incluída no Novo Testamento.
Nesta introdução, adotamos uma abordagem cronológica para as cartas de Paulo, explorando-as na ordem de escrita em vez da ordem canônica. Portanto, é apropriado começar com Gálatas. Apesar de sua extensão relativamente breve, essa carta exerceu uma influência imensa sobre o cristianismo.
Os primeiros líderes da igreja deixaram mais comentários sobre Gálatas do que sobre qualquer outro livro do Novo Testamento. Ela também ocupou um lugar especial no coração do reformador protestante Martinho Lutero, que a comparou em estima a sua própria esposa preciosa, referindo-se a ela como:
“minha epístola pessoal, à qual eu prometi eterna fidelidade; minha Katie von Bora”.
Como um tributo à natureza fundamental de Gálatas para a compreensão do evangelho cristão, G. Duncan descreveu a carta como a:
“carta magna do cristianismo evangélico”. (G. Duncan)
R. Longenecker elaborou:
“historicamente, Gálatas tem sido fundamental para muitas formas de doutrina, proclamação e prática cristãs. E permanece verdadeiro hoje dizer que o modo como se compreendem as questões e os ensinamentos de Gálatas determina em grande parte que tipo de teologia é defendida, que tipo de mensagem é proclamada e que tipo de vida é vivida”. (R. Longenecker).
A Epístola aos Gálatas oferece uma série de contribuições substanciais para a teologia e ética presentes no Novo Testamento. Entre essas contribuições, destaca-se de forma destacada a sua exposição da doutrina da justificação.
O ponto culminante dessa breve epístola reside na crítica abrangente dirigida tanto às concepções antigas quanto às contemporâneas que afirmam que o destino eterno de um indivíduo está condicionado às suas ações pessoais, participação em rituais ou cumprimento de normas grupais.
Através dessa carta, emerge um claro contraponto a essas noções, ressaltando a libertação do crente da servidão à lei. Em seu lugar, a epístola introduz uma perspectiva de justiça mais elevada, uma justiça não somente inspirada, mas também fortalecida pelo Espírito que reside no âmago do indivíduo.
Do ponto de vista doutrinário, a conversão da narrativa da salvação delineada na Epístola aos Gálatas é de extrema magnitude, sendo difícil exagerar sua importância. Ao elucidar a essência do evangelho ao transmitir a mensagem da salvação integralmente fundamentada na graça divina e dirigida exclusivamente por meio da fé, esta carta não apenas entendeu, mas também consolidou a essência adotada do ensinamento cristão.
Tal esforço ocorreu em um período no qual alguns, inclusive de dentro da comunidade eclesiástica, empreendiam tentativas de subverter o próprio cerne do evangelho.
Assim, a avaliação de A. Cole acerca de Gálatas foi precisa ao referi-la como uma:
“refutação teológica de uma heresia que, se aceita, teria destruído toda a igreja” (A. Cole)
Gálatas fica como a objeção mais incisiva e cristalina à noção de salvação por meio de esforços humanos, com autoria atribuída ao apóstolo Paulo.
Recentemente, entretanto, esta epístola tem sido objeto de intensos debates, à medida que estudiosos e teólogos do Novo Testamento têm começado a questionar as tradições da doutrina de justificação pela fé.
Motivo e Propósito do Livro de Gálatas
Considerando a premissa da teoria que envolve a região sul da Galácia, a análise de Atos 13 e 14, (certamente a carta deve ter chegado na região norte da Galácia) aliada a algumas alusões dispersos em Atos, apresentou o empenho pioneiro de Paulo no estabelecimento de comunidades eclesiásticas no sul da Galácia.
O trabalho evangelístico inicial de Paulo junto aos Gálatas, complicações decorrentes de uma enfermidade que afetou sua visão, conforme narrado em Gálatas 4.13-16. Apesar dessas adversidades, a recepção dos Gálatas a Paulo foi escrita, marcada pelo reconhecimento da origem divina de sua mensagem. Eles o acolheram como se ele fosse um emissário celestial, ou até mesmo o próprio Cristo.
A notável receptividade dos Gálatas ao evangelho de Paulo levou a uma adesão significativa, evidenciando assim a nomeação divina para a vida eterna que Paulo carregava consigo, conforme testemunhado em Atos 13.48; 14.4 e 21. A profundidade do amor dos Gálatas por Paulo foi tão intensa que eles demonstraram disposição de sacrificar sua própria visão para restaurar a visão de Paulo, caso tal ato fosse viável.
Desde os primeiros momentos de seu ministério junto aos Gálatas, Paulo inequivocamente proclamou a mensagem do evangelho da graça. Conforme atestado em Atos 13.38 e 39, Paulo apresentou a ambos, judeus e gentios que adoravam a Deus na sinagoga de Antioquia da Pisídia, a oferta do perdão dos pecados por meio de Jesus:
“Todo aquele que crê nele é justificado de todas as coisas, das quais não podiam ser justificados pela Lei de Moisés”.
Contudo, a jornada de Paulo encontrou obstáculos substanciais advindos da oposição enérgica dos jovens da região.
Inicialmente, essa oposição judaica foi incitada por inveja em relação ao sucesso e à popularidade alcançada por Paulo entre o povo, como relatado em Atos 13.45. Entretanto, essa rivalidade pessoal cedeu rapidamente lugar a controvérsias de natureza religiosa.
A menção em Atos 14.3, referindo-se ao Senhor que “confirmava a mensagem da sua graça” por meio de manifestações miraculosas, sugere que a oposição judaica tinha sua ênfase central no embate contra o ensinamento de Paulo sobre a graça.
Assim sendo, o tema crucial da salvação da graça versus a Lei de Moisés permeou toda a trajetória do ministério de Paulo entre os Gálatas, tornando-se o ponto de divisão entre os discípulos e a comunidade judaica gálatica.
Logo após a partida de Paulo da região, houve uma infiltração de falsos mestres na comunidade eclesiástica, os quais deixaram a pregar uma perspectiva do evangelho que se distingue — enfatizando a manutenção da Lei de Moisés, notadamente a prática da circuncisão, como um requisito essencial para a salvação, em contraposição à simples fé no evangelho da graça.
Esses falsos mestres, muito provavelmente de origem judaica e se autodenominando cristãos, encontraram-se em choque com a clara postura de Paulo, que rejeitou veementemente a imposição da Lei como uma condição para a salvação genuína, como exposto em Gálatas 1.6-9.
Na análise acadêmica, é comum rotular esses elementos distorcidos como “judaizantes”, devido à sua tentativa de impor princípios judaicos aos recém-convertidos ao cristianismo. Esses judaizantes promoviam uma mensagem em consonância com a proclamação feita em Atos 15.1:
“Se não vos circuncidardes conforme o traje de Moisés, não podem ser salvos”.
Vale observar que, embora os judaizantes possam não ter insistido na observância plena de toda a Lei, a circuncisão figurava como seu ponto focal. Contudo, Paulo advertiu com firmeza que a imposição da circuncisão como condição para a salvação acabaria por estender a obrigatoriedade de observar a totalidade da Lei do Antigo Testamento, conforme delineado em Gálatas 5.3.
Portanto, em várias ocasiões, Paulo reafirmou o evangelho, refutando a necessidade de iniciar à Lei de maneira ampla, como evidenciado em passagens como Gálatas 1.16, 21; 2.2, 5, 10 e outras.
A proclamação clara do evangelho da graça realizada por Paulo estabeleceu uma base tão sólida que a insistência na circuncisão e na adesão estrita à Lei somente poderia ser sustentada por uma negação do apostolado de Paulo.
Essa postura levou à acusação por parte dos judaizantes, alegando que o apostolado de Paulo era, de alguma forma, inferior ao dos demais apóstolos. Esses oponentes distorciam os ensinamentos das Escrituras, alegando possuir uma autoridade autônoma — a mesma autoridade dos apóstolos pioneiros da igreja em Jerusalém.
Diante disso, os membros da comunidade cristã na Galácia abandonaram o verdadeiro evangelho, desenvolvendo sentimentos de ressentimento em relação a Paulo e suas instruções, ao mesmo tempo em que rejeitaram a autoridade do apóstolo.
A Epístola aos Gálatas foi escrita por Paulo com o intuito de defender o evangelho da justificação mediante a fé exclusivamente, contrapondo-se ao falso evangelho propagado pelos judaizantes. Nesse processo, ele também teve de fortalecer sua própria autoridade apostólica diante dos ataques dos judaizantes.
Além disso, ciente de que alguns leitores poderiam interpretar sua defesa do evangelho da graça como uma justificativa para comportamentos imorais ou antiéticos, Paulo elaborou uma carta também para sustentar a harmonia entre uma vida guiada pelo Espírito e conforme as justas exigências da Lei.
A Divisão da Carta aos Gálatas
Nós podemos enxergar na estrutura do livro de Gálatas uma elaboração de excelência paulina ao contrário do que disseram muitos críticos.
Podemos dividir conforme abaixo e fazer um breve comentário de cada corte do livro:
- Abertura – (1.1-5)
- Advertência Paulina – (1.6 a 4.11)
- Apelo Para a Escolha – (4.12 a 6.10)
- Conclusão – (6.11-18)
I. Abertura da Carta aos Gálatas – Gl 1.1-5
As urgências presentes nas comunidades da Galácia levaram Paulo a não postergar a abordagem das confusões que assolavam essas igrejas. Mesmo ao delinear a identidade do remetente, os destinatários e as saudações iniciais, Paulo já começava a tocar nos aspectos centrais que posteriormente discutiriam com mais profundidade.
Primeiramente, empreendeu a defesa de sua autoridade genuína apostólica. O termo “apóstolo” denota alguém investido por outrem com a responsabilidade de uma missão, conferindo-lhe a autoridade para executar tal missão. Paulo enfatizou que sua comissão para o serviço não decorria de uma assembléia humana, levada fora transmitida por meio de um homem agindo em nome de Deus. Ao invés disso, seu chamado para o ministério derivava da comissão de Jesus Cristo e do Pai.
Ao estabelecer um contraste entre Jesus e a humanidade, e ao associar Jesus Cristo ao Pai como duas fontes de sua comissão, Paulo insinuou a designação de Cristo e afirmou sua investidura divina.
A alusão à ressurreição, presente no discurso de Paulo, certamente evocava a memória dos leitores sobre o fato de que seu chamado provinha de um Jesus glorificado e ressuscitado, elevando seu próprio apostolado a uma posição de equivalência em relação aos Doze.
Paulo também mencionou a seus colaboradores que o acompanhariam em suas jornadas, a fim de evidenciar que seu evangelho não era uma singularidade defendida exclusivamente por ele, mas era compartilhada por outros indivíduos piedosos.
Dessa maneira, Paulo habilmente empregou esses elementos para afirmar a natureza divina de Cristo, destacar sua própria comissão divinamente sancionada e ressaltar a amplitude do apoio à mensagem que ele proclamava.
Paulo enfatizou a identificação de Jesus Cristo como a fonte de graça e paz, ao se apoiar em sua morte sacrificial. Ele destacou que Cristo se entregou em sofrimento por nossos pecados, assumindo a carga da maldição que nossas transgressões mereciam, a fim de nos libertar dessa transitória (conforme 3.13).
Diante da possibilidade de que os oponentes de Paulo pudessem argumentar que a perspectiva do perdão baseada exclusivamente na expiação substitutiva de Cristo encorajasse um comportamento irresponsável e imoral, Paulo antecipou essa objeção e afirmou que a morte sacrificial de Jesus não tinha apenas a intenção de conceder o perdão ao crente, mas também de resgatá-lo das influências corruptoras de uma era decaída.
Isso, e nada menos, alinhava-se com o propósito divino para o crente.
Ao reconhecer que pertence à era vindoura e começar a viver de acordo com essa consciência (cf. Colossenses 3.1-17), o crente é resgatado da corrupção presente na atual era maligna. A era vindoura representa um período de ressurreição, no qual o crente será plenamente libertado de sua degradação e no qual Cristo submeterá todas as coisas ao seu domínio.
O breve resumo de Paulo do evangelho o fez irromper, acertadamente, em uma doxologia. O evangelho com sua mensagem sobre o perdão e sobre a transformação mostra a glória eterna de Deus e incita as suas criaturas a louvá-lo como nada mais o faz.
II. Advertência Paulina – Gl 1.6 a 4.11
As seções de Admoestação Paulina – (Gálatas 1.6 a 4.11) Dentro desta seção, Paulo gerenciou uma repreensão aos gálatas por terem desviado do único evangelho genuíno, ao acolher a alegação dos judaizantes de que a circuncisão se torna essencial para a salvação.
Paulo, por meio da história e da teologia forma dois cortes – vamos aborda-las:
Seção Histórica – 1.6 a 2.21
No contexto da rejeição do evangelho que Paulo pregou pelos judaizantes, ele empenhou-se em verificar que seu evangelho possuía uma origem divina, não humana. Paulo sustentou que o próprio Jesus Cristo havia revelado esse evangelho diretamente a ele. Com clareza, o evangelho de Paulo não encontrou raízes em sua trajetória judaica anterior.
Seu compromisso com a tradição judaica, na verdade, o conduzira a perseguir a igreja e a fé cristã. Da mesma forma, o evangelho pregado por Paulo não derivava dos demais apóstolos ou dos líderes da igreja em Jerusalém, conforme indicado em 1.11 e 1.12. Na realidade, somente anos após sua conversão, ele estabeleceu contato com esses influentes seguidores do cristianismo.
Quando, finalmente, Paulo encontrou os apóstolos e líderes da igreja em Jerusalém, sua mensagem evangelística recebeu aprovação recebida, e eles o incentivaram a receber com seu ministério voltado aos gentios.
No decorrer desse encontro, Paulo também constatou que alguns desses líderes destacados da igreja não mantinham uma conduta coerente com o evangelho que todos eles proclamavam. Isso levou Paulo a confrontá-los em virtude dessa discrepância, conforme registrado em 2.11-14.
Esse ato de confronto por parte de Paulo efetivamente demonstrou que sua autoridade apostólica não era em nenhum aspecto inferior aos líderes.
Diante disso, Paulo, através de argumentos sólidos e experiências vivenciadas, estabeleceu a origem divina de seu evangelho, bem como a equivalência de sua autoridade apostólica em comparação com a dos demais líderes da igreja.
Paulo lembrou esses judeus cristãos que até mesmo eles foram salvos pela fé em Jesus Cristo e não pela obediência à lei. Se até mesmo os judeus não foram salvos pela lei, certamente a lei não era o meio de salvação para os gentios. Pela sua união com Cristo, os fiéis participaram na morte de Jesus.
Eles morreram para a lei e a lei já não exerce autoridade sobre eles.
Cristo, porém, habita nos fiéis, o que permite que vivam dignamente. A gratidão do fiel pelo grande amor e enorme sacrifício de Cristo motiva o justo viver do fiel.
Seção Teológica – 3.1 a 4.11
Paulo prosseguiu sua crítica ao falso evangelho dos judaizantes ao apresentar uma série de argumentos de natureza teológica.
Primeiramente,
…ele ressaltou que a própria experiência religiosa dos gálatas sustentava a centralidade da fé em contraposição à observância da lei (3.1-5). A concessão do Espírito Santo aos crentes ocorria mediante a aceitação do evangelho pela fé. A presença do Espírito neles se manifesta por meio de milagres e evidências tangíveis. Isso, por sua vez, indicava que a base real para a salvação era a fé, não a observância da lei.
Em segundo lugar,
…Paulo ilustrou a validade da fé como o meio através do qual uma pessoa é considerada justa perante Deus, ao continuar à descrição da relação de Abraão com a lei (3.6-9). Apesar de Abraão ser notório como o ancestral dos judeus, as Escrituras do Antigo Testamento prenunciavam que povos de todas as nações seriam sugeridos com a justificação por meio da fé. Essa previsão apontava para a verdade fundamental de que a fé é o elemento primordial para a retidão diante de Deus, como exemplificado pela própria experiência de Abraão.
Assim, por meio de argumentos sólidos, Paulo fortaleceu seu embate contra o falso evangelho judaizante, demonstrando que a fé é o alicerce inabalável da salvação, corroborando sua posição teológica.
Em um terceiro ponto,
…destaca-se que a doutrina da salvação por meio das obras da lei implica na necessidade de uma obediência completa e incondicional. Aqueles que não conseguem observar a totalidade das prescrições legais são, de fato, colocados sob a maldição da lei. Contudo, é importante notar que, por meio de Sua morte vicária, Jesus assumiu essa maldição em nome dos pecadores, a fim de redimi-los da imposta pela própria lei.
Em quarto lugar,
…a aliança estabelecida por Deus com Abraão, alicerçada na fé, antecedeu a promulgação da lei em um intervalo de 430 anos (3.15,16). Essa aliança fundamentada na fé permanece como um fundamento sólido e duradouro. Ela serve como um testemunho marcante de que a justificação pela fé possui uma natureza intrínseca, remontando a um período anterior à imposição legal.
Desse modo, ao explorar esses pontos, Paulo reforçou sua argumentação contra a ideia de salvação por meio das obras da lei, enfatizando a importância da fé e destacando a preeminência da aliança baseada na fé, que prevaleceu independentemente da subsequente promulgação da lei.
Em quinto lugar,
…vale ressaltar que a lei não foi originalmente concedida com a orientação de conferir salvação, mas sim para orientar os pecadores a Cristo (Gálatas 3.19-26). A lei compreendeu uma compreensão do pecado e condenou toda a humanidade por suas transgressões, tendo, portanto, a intenção de direcionar os pecadores a voltarem-se para Cristo em busca de salvação.
No sexto ponto,
…torna-se evidente que os crentes de origem gentílica não são de maneira alguma considerados membros de segunda categoria na família divina (Gálatas 3.27 a 4.7). Por meio de Cristo, as distinções espirituais foram eliminadas entre os crentes. Deus adotou tanto os fiéis quanto os gregos como Seus filhos, conferindo-lhes igualdade de status diante d’Ele.
Finalmente, em sétimo lugar,
…a prática de observar o calendário ritual judaico como um meio de alcançar a salvação não passou de um vestígio de paganismo, do qual os gálatas já haviam sido libertos (Gálatas 4.8-11). Essa abordagem estava em condições com a liberdade trazida pelo evangelho.
III. O Desafio da Escolha – Gl 4.12 a 6.10
Após esclarecer as distorções trazidas pela heresia judaizante, Paulo fez um apelo aos gálatas, instando-os a retornarem ao evangelho genuíno (Gálatas 4.12-20).
Ele iniciou essa exortação relembrando aos gálatas o relacionamento próximo que compartilhavam, ressaltando a intimidade que havia caracterizado sua interação.
Ao fazer isso, Paulo avisou-os de que o cuidado demonstrado por ele estava ausente nas ações dos judaizantes. Na realidade, o ministério exercido pelos protegidos da heresia judaizante entre os gálatas estava impregnado de motivações egoístas, camufladas sob a superfície.
O apóstolo empregou uma analogia baseada nas figuras de Sara e Hagar, com o intuito de transmitir o ensinamento de que os autênticos descendentes de Abraão desfrutaram da liberdade, não sendo sujeitos à escravidão da lei.
Ele também afirmou que esses descendentes verdadeiros foram historicamente perseguidos pelos falsos descendentes de Abraão, que eram admitidos à servidão. Nesse contexto, ele encorajou os gálatas a removerem os adeptos da heresia judaizante de suas congregações.
Além disso, alertou que a circuncisão não poderia ser dissociada das outras demandas da lei. Caso a circuncisão fosse considerada necessária para a salvação, então toda a legislação tornar-se-ia compulsória (Gálatas 4.21-31).
O apóstolo dissipou suspeitas de que a fé desvinculada da lei resultaria em comportamento imoral, recorrendo a três fundamentos de retidão para o crente: o Espírito Santo, a fé e a influência da comunidade de fé (Gálatas 5.15-26). A justiça que a lei requisitava manifestava-se por intermédio do Espírito, nutrida pela fé.
A fé, quando permeada pelo amor, é agradável a Deus e cumpre os preceitos da lei. A vida produzida pelo Espírito é pautada por atributos como amor, alegria, paz, paciência, bondade, generosidade, fidelidade, humildade e autocontrole. Esse modo de viver harmoniza-se plenamente com as exigências morais protegidas pela lei.
Além disso, caso um crente desviasse para uma conduta pecaminosa, os membros da comunidade eclesiástica assumiram a responsabilidade de orientar esse indivíduo de volta à senda da justiça (Gálatas 6.11-18). Esse compromisso de cuidado com a restauração refletia o coletivo e a dedicação ao desenvolvimento de uma vida justa e moralmente congruente.
Conclusão – Gl 6.11-18
O apóstolo refutou as suspeitas de que a fé sem a lei leva à vida imoral, apelando para três fontes de justiça para o fiel:
- O Espírito, a fé e a influência da igreja (5.15-26).
A justiça que a lei exigia era produzida pelo Espírito através da fé. A fé operando pelo amor é o que agrada a Deus e cumpre a lei. A vida que o Espírito produz é caracterizada por amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão e domínio próprio. Esse estilo de vida era totalmente coerente com as exigências morais da lei.
Temas Teológicos de Gálatas
Paulo está pronto para desenvolver suas argumentações teológicas assim como seu público alvo, deveria estar pronto para receber sua palavra.
A Teologia e Propósito de Gálatas então aborda temas teológicos importantíssimos. A saber:
Justificação Pela Fé em Contraste as Obras da Lei
Paulo enfatizou com clareza que a justificação ocorre por meio da fé, desvinculada das obras da lei. Desde os tempos da Reforma Protestante, passagens como Gálatas 2.15,16 e 3.6-14 têm sido interpretadas como ensinamentos que afirmam que, em virtude do divino de Jesus, os pecadores são considerados justos pelo juízo mediante a fé em Cristo, e não com base em suas próprias ações de obediência.
No entanto, discussões acadêmicas recentes têm gerado questionamentos sobre essa interpretação tradicional em diversos aspectos.
Estudiosos têm propostas de abordagens interpretativas inovadoras em relação ao significado do termo “justificação”, à identificação das “obras da lei” e à natureza da fé. Um desses acadêmicos, NT Wright, sustentou que o conceito de “justificação” não diz respeito à imputação da justiça divina ou da justiça de Cristo ao crente, mas sim constitui uma antecipação do julgamento final de Deus sobre o indivíduo. Esse juízo abrange uma avaliação da totalidade da vida do crente e não se baseia unicamente em uma mera profissão de fé.
A interpretação de Wright sobre a justificação representa uma abordagem abordada para corrigir perspectivas que negligenciam inteiramente o papel das obras no contexto do juízo escatológico.
É evidente, com base em Gálatas 5.19-21, que uma vida identificada pelas chamadas “obras da carne” exclui um indivíduo da esfera do reino de Deus. Isso destacou que tanto a vida quanto as ações desempenham um papel concreto no cenário do juízo final.
Entretanto,
…é importante ressaltar que a conclusão de que as “obras da carne” invalidam a entrada no reino não implica automaticamente que o “fruto do Espírito” qualifique o indivíduo.
Paulo não afirmou explicitamente que a justiça genuína do crente o habilita a herdar o reino. A falta dessa declaração específica, embora pudesse equilibrar a dicotomia entre o “fruto do Espírito” e as “obras da carne”, reforça a mensagem subjacente que perpassa toda a epístola: a justiça que capacita o indivíduo a resistir à avaliação divina é uma justiça externa, imputada ao crente com base na sua fé.
Embora a justiça imputada (justificação) e a justiça construída (santificação) estejam inseparavelmente conectadas, elas ainda podem ser discernidas distintamente. Em última análise, é a primeira, e não a segunda, que confere ao crente a aceitabilidade diante de Deus.
J. D. G. Dunn sustentou que, embora o termo “obras da lei” frequentemente se refira aos atos prescritos pela Torá, ele tem uma aplicação mais específica voltada principalmente aos rituais e práticas que distinguem os judeus dos gentios, como a circuncisão, a observância do sábado e conformidade com as leis de pureza.
Dessa forma, a ênfase de Paulo na justificação pela fé, dissociada das “obras da lei”, não visava indivíduos que buscavam alcançar a salvação por meio de uma conduta moral, mas sim aqueles que erroneamente acreditavam que a conversão ao judaísmo era necessária para a obtenção da salvação.
No entanto, um corpo considerável de evidências sugere que as “obras da lei” nas quais alguns judeus confiariam para sua salvação abarcavam esforços em aderir a todas as prescrições da lei,
A livre citação feita por Paulo do versículo 26 do livro de Deuteronômio em Gálatas 3.10 ressalta a necessidade de obedecer a todos os elementos da lei a fim de escapar da maldição que a lei acarreta.
Isso indica que a totalidade da lei, e não somente os “marcos divisores” judaicos, estava em consideração na expressão “obras da lei”.
Além disso, a declaração de Paulo de que “nem mesmo os próprios circuncidados guardam a lei” (Gálatas 6.13) sugere que seus oponentes não se limitavam apenas à circuncisão, mas também incluíam o sábado e questões de pureza entre suas preocupações.
Por último, há estudiosos que sustentam que a expressão comumente traduzida como “fé em Cristo” (pistis Christou, por exemplo, 2.16) deveria, na realidade, ser interpretada como “fé/fidelidade de Cristo”.
Isso se refere à fidelidade de Cristo para com Deus, especialmente manifestada por meio de sua obediência até a morte. No entanto, as declarações como “nós temos crido em Cristo Jesus” (2.16), as alusões a “ouvir com fé” (3.2,5), o exemplo da fé de Abraão (3.6-9) e a menção a Cristo como o objeto da fé (3.26) todos corroboram a abordagem de interpretação tradicional.
Gálatas, em seu ensinamento, reforça que os crentes são considerados justos por Deus, tanto no presente quanto no momento do julgamento escatológico, com base no cumprimento de Cristo e como resposta à fé em Jesus, ao invés de serem justificados por meio da obediência à lei do Antigo Testamento.
A Natureza da Expiação
Gálatas 3.10-14 apresenta uma das mais explícitas exposições no Novo Testamento sobre a natureza substitutiva da morte de Jesus.
Aqueles que fundamentam sua salvação nas obras da lei encontram-se sob a maldição divina. Para que alguém seja considerado justo mediante a obediência à lei, é necessário cumprir todas as leis de forma contínua.
Uma contextualizada à luz de Deuteronômio 27.26 revela que a crucificação de Jesus demonstra claramente o fato de que ele suportou a maldição dos pecadores fiéis em seu lugar e conseqüentemente, a morte de Jesus trouxe consigo o perdão aos pecadores, uma vez que ele assumiu a punição por seus pecados, permitindo-lhes escapar da ira de Deus e serem declarados justos perante Ele.
A Transformação de Vida do Cristão
Os opositores judaicos de Paulo na região da Galácia provavelmente apresentavam argumentos que defendiam a necessidade da lei como um meio de conter a conduta pecaminosa dos crentes. Por outro lado, seus adversários com uma perspectiva mais libertina sustentavam que, uma vez que a salvação dos crentes era alcançada somente por meio da fé, suas vidas pessoais não tinham ouvido diante de Deus.
Em Gálatas, Paulo refutou esses dois equívocos ao enfatizar a transformação substancial que ocorre na vida dos crentes. Ele reiterou que, ao depositarem sua fé em Cristo, os crentes receberam o Espírito de Deus (3.2). O Espírito se manifestou entre eles por meio de feitos miraculosos (3.5) e atuava como a fonte da justiça pessoal que os crentes genuínos almejavam (5.5).
O destaque dado ao amor como a expressão primordial do Espírito é altamente significativo, uma vez que o amor constitui a essência da própria lei (5.13-15; cf. Lv 19.18).
A mudança transformadora trazida pelo Espírito é tão notável e revolucionária que Paulo a descreve como uma “nova criação” (6.15), ecoando as promessas da aliança vinculada em Ezequiel 11.19,20 e 36.26,27.
A nova criação realizada pelo Espírito no crente atua como o padrão, a norma pela qual o crente direciona sua vida (Gl 6.16). Consequentemente, o evangelho proclamado por Paulo não oferece licença para um comportamento pecaminoso, mas sim um impulso para uma vida genuinamente justa.
A Identidade de Jesus
Gálatas reflete uma cristologia de elevada magnitude. A singularidade da identidade de Jesus é evidenciada desde o primeiro versículo da carta, onde Paulo enfatiza que ele foi designado como apóstolo “não por meio de homem, mas por Jesus Cristo”.
Esse contraste serve para estabelecer Jesus como alguém além da simples categorização como humano, profeta ou mensageiro divino, sugerindo assim sua supremacia e natureza divina.
A carta menciona quatro vezes Jesus como “Filho” de Deus (1.16; 2.20; 4.4,6).
Além disso, o título de “Senhor” é frequentemente atribuído a Jesus na carta, um título com conotações divinas que era frequentemente usado como substituto para o nome de Yahweh nos textos judaicos em grego, assim como nas cartas de Paulo.
A Epístola aos Gálatas é amplamente considerada a primeira entre as cartas escritas por Paulo, possivelmente constituindo até mesmo o documento mais antigo do Novo Testamento.
A proeminência da cristologia nesse contexto assume um significado notável, uma vez que aponta para o fato de que uma compreensão elevada de Jesus não resultou de uma progressão teológica, na qual a figura de Jesus tenha evoluído de uma mera figura humana para um estado semidivino e, por fim, divino.
Esta carta contradiz essa noção, visto que demonstra que uma cristologia elevada estava presente desde as origens, destacando que Jesus proclamou e exemplificou sua liderança diante de seus primeiros seguidores.